quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Cinzas

Céu azul e sol forte.
A folia continua na cidade... Mas o movimento é menor.
Dia de Cinzas.

Segundo o "sabedor" Wikipedia:
"A quarta-feira de cinzas é o primeiro dia da Quaresma no calendário cristão ocidental. As cinzas que os cristãos católicos recebem neste dia são um símbolo para a reflexão sobre o dever da conversão, da mudança de vida, recordando a passageira, transitória, efêmera fragilidade da vida humana, sujeita à morte."

As cinzas representam o real arrependimento perante Deus.
E assim se dão os sacrifícios de Quaresma.

Já vi diversas formas de sacrifício.
E sempre me pergunto como fazer isso de forma certa.
Porque se é motivo para mudança de vida, o sacrifício não deveria terminar em 40 dias. Deveria se tornar hábito.
Ou não?...
Tenho muita dificuldade com sacrifícios de Quaresma.
Parte por fraqueza, parte por falta de convicção.
Não acredito que vá valer a pena sem mudanças.
Não me sinto sendo sincero ao viver uma transformação com prazo de validade.

Mas o sentido de toda essa reflexão vai além da conversão católica.
Amanheci com a sensação de que preciso inventar novas vidas.
No papel ou na minha história.
A sensação de que as coisas devam mudar.
Os rumos devam mudar.
Necessidade de novas pessoas, novos risos, novas ambições.
Necessidade de novo.

Antes do Carnaval, recebi uma notícia triste.
Mais que de morte.
De vida interrompida...
De uma vida que, a meu ver, embora sujeita a grandes atribulações, sempre apareceu com sorriso. Uma vida que, embora já distante, não imaginava tão sofrida.

Diversas coisas passaram pela minha cabeça antes de cair na folia...
Foi inevitável pensar que posso ser arrebatado pelo outro.
Porque o social nos faz menor.
E desperdiçamos essência e vida na necessidade de sermos aceitos.
Mas também não podemos nos fechar para o social.
Porque não vivemos sem ele...
E ele, de certa forma, nos redime.

Depois de uma noite insone, abstraí...
Fui a blocos, revi amigos, não consegui encontrar com outros.
Vi confraternizações.
Vi alegria verdadeira.
Mas também vi a necessidade de ser alegre.
A vontade de vida.
Mas também a vontade de parecer que se está vivendo.
A vida nem sempre vivida.

Ontem, estava cansado.
Queria reencontrar amigos em blocos.
E aproveitar a vida no último dia de folia.
Mas já estava cansado.

Aproveitei pra ficar em casa até o meio da tarde.
E, ao ligar a TV, esbarrei no filme "Três irmãos de sangue".
A história de Betinho, Henfil e Chico Mário.


Os três irmãos Souza.
Os três hemofílicos.
Os três vítimados pela AIDS.

Já conhecia os três, as histórias... Mas não a fundo.
E a mensagem veio na hora certa.
Não menos providencial...
Ontem, começaram as minhas cinzas.

Betinho, Henfil e Chico Mário eram geniais.
Sociólogo, cartunista e músico geniais.
Pessoas geniais.
E como o filme mesmo mostra... Nenhum era santo. Nenhum era perfeito.
Havia defeitos.
Mas eles viviam os defeitos, as raivas e a necessidade de vida.
Não de forma banal. Nem menos alegre. Mas produtiva.
Eles sabiam que poderiam morrer a qualquer hora.
Por qualquer besteira.

Os três eram preocupados com o social.
Com a dignidade.
Contra as injustiças.
E lutaram por isso.
E as barreiras que encontravam eram maiores. Não eram apenas fragilidades por descaso e indiferença. Eram fragilidades físicas.
Mas eles iam adiante. Como o mar. "Como o sangue."

"O dever da mudança de vida, recordando a passageira, transitória, efêmera fragilidade da vida humana, sujeita à morte."

E depois de uma perda, uma folia e um filme, eis que minhas cinzas se mostraram como as velhas chagas que me acompanham.
A eterna preocupação com a vida... Mesmo que, muitas vezes, farto dela.
Os mesmos sonhos.
Todos ainda juntos, mas numa necessidade de fazer diferente.
De seguir com a mesma cabeça, em outro corpo.
Não ser mais o mesmo.

Eis aí o meu sacrifício.
Porque pra uma pessoa que tem dificuldade com mudanças... Mudar já é o sacrifício.

E sei que a conversão não deve passar pela necessidade de parecer ou me sentir mais vivo. Mais alegre. Mais aceito.
Passa por ser mais sangue.
Mais mudança.
Menos cinza e mais Cinzas.

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