segunda-feira, 7 de junho de 2010

E a nossa barricada?

Barricada
Luis Fernando Veríssimo

"Um dia, irmão, comemoraremos nossa vitória com um banquete. Todos os que lutaram, ou que só usaram o barrete. E bêbados de nós mesmos, a mesa coberta com os destroços do combate - difícil dizer o que é sangue e o que é molho de tomate. Brindaremos as cadeiras vazias dos que lá não estão.
Os fantasmas de uma geração.

Um que morreu no exílio e foi devorado por vermes estrangeiros.
Um que enlouqueceu um pouco e tem delírios passageiros.
O que comprou um sitio em Cafundós do Oeste e nos manda fotos tristes dos seus pés em tamancos.
O que nós só vemos na rua, esbaforido, correndo entre dois bancos.
O que era anarquista e acabou na IBM.
O que era poeta maldito e acabou na MPM.
O que casou com a Vivinha e dizem que come a sogra.
O que era seminarista e transa droga.
Um que ia mudar o mundo, e se mudou.
O que ia ser melhor de nós todos, e vacilou.
Nossa Rosa Luxemburgo, que abriu uma butique.
Nosso quase Che Guevara, que hoje vive de trambique.

Restaremos você e eu, irmão. E os balões circundarão nossas cabeças como velhos remorsos. E o pianista ruirá sobre as teclas como o Império Bizantino. E os garçons olharão os relógios e desejarão a nossa morte. Seremos sentimentais e um pouco arrogantes. Danem-se nossas trapalhadas, estivemos nas barricadas! Esta civilização nos deve, pelo menos, outra rodada.
Um dia, irmão, um dia.
Você proporá um brinde à razão e nossos copos vazios, com o choque, explodirão. Eu cantarei velhos hinos revolucionários, sob o protesto dos vizinhos, certamente reacionários. Brindaremos à fraternidade universal e à luta antiimperialista e à Nena do Tropical, que dava desconto pra esquerdista. Choraremos um pouco. E cataremos, entre as migalhas da mesa - como oráculos o futuro nas vísceras de um cágado -, vestígios do nosso passado.
O toco de um Belmonte Liso.
Meu Deus, o meu dente do siso!
Bilhetes de loteria que nunca deram e de namoradas que também não.
A letra semi-apagada de Great Pretender.
Um tostão.

Bêbados de autopiedade, brindaremos esta cidade onde nascemos e morremos mais de uma vez (só eu forma três) mas salvamos do inimigo. Nosso reino, nosso umbigo. Não temos placas na rua como heróis da Resistência, mas temos a consciência de que os bárbaros não passaram. Mas sei que no fim desses disse-que-disses os dois prostrados como mãe de misses já com aquele olhar do Ulysses você me dirá no nariz, com um bafo que, bem aproveitado, seria uma força motriz:
- Como, heróis? Como, não passaram? Meu querido, não te falaram?
E completará com um gargalo, a caminho do assoalho:
- Os bárbaros ganharam!"


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E a nossa luta? E a nossa barricada?
É essa que está aí...
E só.

E continuamos bebendo.
Mudando.
Virando aquilo que não imaginávamos ser... (Che Guevaras vivendo de trambiques?)
Continuamos casando com a Vivinha.
Nos vendo na rua, correndo, entre dois bancos.
Mas sem barricadas.

A barricada não é necessária para dignificar.
Mas a luta de hoje também não dignifica. A luta de hoje é outra...
É conseguir se adaptar.
É poder dizer... Ó, consegui casar com a Vivinha depois de muito custo. Não que a Vivinha fosse dura na queda... Eu que era duro.
É viver de trambique... e só.
Porque Che Guevara virou estampa de butique.
É ver o doidão escolher ser seminarista, depois voltar a ser doidão... E achar isso normal. (Você sabia que ia acontecer).

É saber que bilhete de loteria só dará se for bolão ou se você se mudar para o interior.
Suspeitar da credibilidade do jogo... Torcer o nariz. Ter certeza de que está sendo roubado.
Mas continuar jogando.
É apostar sabendo que metade do país tá esperando dar...
(Porque tá muito difícil conseguir de outro jeito.)
E não vai dar.
É saber que se ela der, nem precisa namorar.

É ter a certeza que jamais teremos nomes em placas na rua.
Que jamais seremos heróis.
Por falta de oportunidade. Mas principalmente por falta de coragem.
É, no fundo, estar pouco se importando para isso.
Mas lamentar não ter uma barricada, uma causa maior para lutar.

E o bar está lá onde queremos que esteja.
No dia que queremos que esteja.
Na hora que a vida deixar... Pra reclamar que não temos tempo pro bar estar lá na hora que queremos que esteja.

Entramos. Sentamos. Aceitamos.
E bebemos um pouco de tudo... A liberdade que conquistaram pra nós. E que não temos... A independência que não temos. A segurança que não temos. A escolha que, embora pareça que teremos, não temos. A luta que queríamos estar vivendo, mas não conseguimos. O sonho que queríamos estar vivendo, mas não conseguimos. O bilhete perdido. A desconhecida que comemos. A camisa do Che Guevara que usamos. O seminarista que não era melhor que nós. O casamento com a Vivinha, que custou um apartamento, e terminou na fotografia. E que vai mal... (O casamento, a Vivinha e a fotografia). O poder se encontrar entre um banco e outro. E o poder falar: "precisamos nos ver... Vou te ligar." O celular com a foto do Che Guevara no papel de parede. O celular que nunca vai ligar. A esperteza de fugir da blitz com uma teclada no celular. A esperteza do guardador de carro, que é maior que a nossa. O carro blindado que, um dia, vamos ter que comprar (com um adesivo do Che Guevara na janela). O garoto que vem vender chiclete na mesa... O... A...

É, meu querido, não te falaram?
Os bárbaros ganharam.

Um comentário:

Anônimo disse...

Grande pensamento! Bom texto! Mas se pensarmos que os 30 anos de hoje são os novos 20...ainda há esperança! Comecemos tudo de novo!